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Nos ideais da paz

Foto do escritor: Cláudia CasavecchiaCláudia Casavecchia

Há algum tempo, tenho sentido uma dificuldade de comunicação curiosa com algumas pessoas muito queridas, com perfis semelhantes. Iniciei meu percurso de autoconhecimento muito cedo. Aos 21 anos, já me interessava muito mais por retiros do que por baladas. Por livros, do que por festas. E estava feliz com isso, estava envolvida numa procura por Deus e queria senti-lo dentro de mim. Iniciei a psicoterapia com 18 anos e venho de um processamento intenso de mim mesma, reviravoltas, mortes e renascimentos muito significativos. Eu encontrei Deus. E dentro de mim sei que esse Deus é muito generoso, risonho e sóbrio, sensato e sensível, poderoso e sombrio. Sombrio? Como assim, sombrio?


Com esse adjetivo quero dizer que Deus está nas sombras, nos recônditos mais esquecidos da alma, naqueles lugares que a cultura, sobretudo a espiritual coloca rótulos e se esquiva, numa carapaça de perfeição absoluta que não coexiste com a realidade de um ser humano, que expressa sua capacidade intelectual brilhante, sua empatia e atributos do espírito e sua selvageria, no sentido primitivo e animal da palavra, um ser humano que uiva, que esbraveja e que sangra muitas vezes.


Voltando ao motivo que me trouxe a esse texto. Percebo que essa realidade que vivencio hoje, de permitir-me ser íntegra e consciente em meus sentimentos mais absurdos: ira, ódio, raiva, tristeza, expressando minhas dúvidas, minhas angústias sobre a vida... incomodam muito todos aqueles que se mantiveram enrijecidos numa postura espiritual obsoleta para a minha experiência. Para mim, essa postura é nada mais que uma defesa. Uma alta e suntuosa defesa contra esse Deus sombrio e tudo o que ele representa a dor, o caos, a dúvida, a discrepância, o absurdo, o conflito, enfim, tudo aquilo que ameaça a paz e a “leveza” espiritual que eles cultivam com muito esforço e que minha presença cutuca neles, que não sabem dialogar, porque são conhecedores e defensores da verdade e que com toda a graça do espírito, querem impor.


O engraçado é que essas pessoas nunca passaram por muitas provas que envolvem acontecimentos reais da vida, dolorosos o suficiente para mobilizar as regiões mais sombrias do ser. Eu já passei. Por muitas vezes e por isso, sei do que estou falando. Eu senti na minha pele e por isso sei que Deus é humano. É a força que emerge das entranhas do desespero e nos coloca de pé, nos clareia o caminho e nos devolve à vida. É a paz sim, não a paz morna de quem não se arrisca e por isso não vive, não beira abismos e por isso não sofre. É a paz que vem depois da tempestade, que limpa o céu e aduba a terra, fazendo o campo florescer. É a diligencia de quem percebe o céu escuro e se protege na medida certa, mas sai na rua e encara a tempestade se for preciso.


É a paz de quem está disposto a viver tudo: o fácil e o difícil, o belo e o feio, a ordem e o caos. Não é a paz que se conquista rezando e meditando, simplesmente. É a paz que se conquista vivendo, enfrentando as tormentas da vida real, que os espirituosos não conhecem, porque se esquivam: muitas vezes não se casam, não tem filhos, não se lançam. Não quero com isso dizer que casamento e parentalidade é o caminho de todos, não. Mas muitas vezes a resistência em viver essas relações é a necessidade de se manter nesse lugar alto, onde é muito fácil dizer o que é certo e o que é errado. Tudo zen, tudo é simples, tudo é a lei da atração, tudo é Karma.


Não! Nós não sabemos tudo, não temos resposta para tudo, estamos em continua construção e desconstrução. Basta olhar para a sociedade. Todo mundo que passa fome, passa fome por que agiu mal em outras vidas? Será mesmo? E assim seguimos, fazendo caridade e não questionando o sistema capitalista que nos governa. E ai se começar a falar em política... espiritualistas não suportam esse campo, porque a realidade é política e eles vivem nas alturas da paz do espírito, enquanto nas regiões sombrias da civilização, seres humanos padecem de fome, de desestrutura, de desespero, de abandono e de morte. Mas isso é problema deles, são miseráveis pecadores que estão assim porque merecem. E eis que a meritocracia aumenta as tabuas rígidas dessa defesa bem construída no devaneio do espírito. E seguimos assim, no equilíbrio das águas paradas e não no desnivelamento das grandes quedas, que nas usinas, produz energia, abastecendo toda (ou quase toda) a civilização. Paradoxos? Eis o mistério da fé.


Cláudia Casavecchia

Episódio do PodCast "A melodia do cotidiano".

 
 
 

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